quarta-feira, 6 de setembro de 2006

mi piacciono i giorni freddi.

no dia em que cheguei à cidade, fazia frio e o céu estava quase sem cor. o vento cortava os ânimos perdidos no ir e vir tão puro dos habitantes da cidade. as muitas gentes, eu podia ver, saíam de casa com pesados casacos em punho, como que prontos a encarar o frio da cidade, e mal olhavam ao redor. talvez estivessem habituados a tudo. eu podia observar todas as coisas, uma vez que tudo me era novo: o frio, o ar, as gentes com seus pesados casacos. fazia um frio cortante no dia em que cheguei à boulogne.

eu estava próxima a uma estação de metrô e às nove e meia da noite ainda havia as gentes caladas na rua, atravessando meu campo de visão como instantes irrecuperáveis. ao lado do metrô, havia um restaurante vazio, exceto pelo balconista que, eu podia ver através da vitrina, olhava obcecadamente para qualquer coisa pregada na parede. com todos os reflexos e vidros que nos separavam, eu podia ver o homem concentrado, os olhos quase tão vazios quanto o estabelecimento, uma melancolia profunda no ambiente em silêncio, não fosse pela televisão ligada e os gritos do narrador do jogo de futebol transmitido pela emissora escolhida pelo balconista. mas ele não lhe prestava a menor atenção. olhava fixamente para qualquer coisa pregada na parede, sem imaginar o frio que fazia lá fora, sem se comover com o zigue-zague de gentes e pesados casacos subindo e descendo as escadas do metrô.

entrei no restaurante e o balconista não se moveu. parecia-me que, para ele, não havia qualquer diferença na súbita mudança de imagens, na minha imagem adicionada ao restaurante vazio. quedei-me a observá-lo durante uma dupla de minutos ou pouco mais que isso; agora podia ver bem: o balconista observava um quadro em tons pastéis de duas meninas dançando felizes num parque em tempos de outono. observei também eu o quadro e resolvi tomar um café para acompanhar o último cigarro que havia em minha caixa metálica própria para guardar cigarros - um presente d'alguns anos atrás de algum amigo conhecido durante as férias de verão, que desaparecera como o verão e que agora não me fazia a menor falta. ousei sobrepor o som da minha voz a do narrador do jogo de futebol transmitido pela televisão.

- bom dia, senhor.
- bom dia, respondeu-me automaticamente o balconista sem mesmo mover-se, sem a menor comoção com a nova presença que se anunciara em seu restaurante, uma saudação repetida sem reflexão, como as preces maçantes de um terço.
- por favor, se não for incômodo, gostaria de pedir um café, eu lhe disse, olhando-o com cada vez mais insistência.
- oh, sim, sim, é claro que a senhora não me incomoda! perdoe-me, eu vou lhe preparar o café. escolha qualquer mesa, estão todas ainda virgens: desde que me mudei para cá, ainda não me apareceu um cliente sequer.

sentei-me. fui tomada por um sentimento de pesar e novidade - como se fosse possível reunir tais sensações; a verdade é que nunca houve linearidade nas sensações humanas e havemos todos de concordar nisso. o balconista pôs-se a preparar o café, sem a mesma concentração com que observava o quadro das meninas dançantes; a verdade é que parecia desconcertado, como se tivesse sido arrancado bruscamente de um mundo todo particular e se envergonhasse de ter estado tão disperso, tão impregnado de si mesmo e das próprias cismas. pôs sobre a mesa que eu houvera escolhido uma xícara de louça de um amarelo fresco como o amanhecer de sóis da primavera, aqueles dias de que eu já não conseguia me lembrar, obscurecidos pelo frio intenso que fazia em boulogne. evitava olhar-me nos olhos, ainda desconcertado e, sem pensar muito, comecei a dizer-lhe:

- é verdade que sou a primeira cliente daqui?
o homem suspirou e olhou tristemente para o teto. sentou-se à mesa sem a preocupação de não ter sido convidado, como se esperasse desde muito alguém com quem finalmente falar. gaguejou um bocado e começou a contar-me:
- faz mais ou menos dois meses, cheguei à boulogne. eu tinha um restaurante consideravelmente menor que este em chatêlet, numa rua alegre e movimentada e era fácil perder-se na visão de jovens bêbados já cansados da noite, turistas perdidos e reencontrados pelas belezas da minha tão cara paris, trabalhadores em fim de expediente que se deixavam ficar ali para abordar as belas moças que não lhes davam qualquer resposta.

suspirou mais uma vez e, não fosse a luz parca do lugar, eu poderia afirmar que havia lágrimas lutando por liberdade rosto abaixo. continuou:

- um dia, uns moços sisudos da mairie me convidaram a ir ao escritório do restaurante. era horário de almoço e o restaurante estava quase cheio, havia muitos pedidos pendentes e apenas dois funcionários trabalhando além de mim. abri o balcão para que os homens entrassem e eu estive atordoado, porque não entendera a súbita aparição. os homens foram frios e rápidos, muito rápidos, no recado triste que me aguardava. eu não sabia, nunca pude saber: o terreno do restaurante pertencia não a minha família, como eu supunha, mas a uma riquíssima família vinda da normandia. ofereceram-me, com uma quase compaixão, uma razoável quantia de dinheiro para que saísse dali o mais depressa possível e começasse negócio noutro lugar. a rica família normanda houvera sido categórica: enviaram-me uma carta exigindo minha saída e alguns papéis que provavam sua posse do terreno. eu mal pude dizer qualquer coisa e os homens foram incisivos ao pedir-me para que assinasse os papéis.

eu o olhava sem desvios. eu havia até mesmo me esquecido do café. o balconista parou de falar por alguns instantes e me observou acender o cigarro e tomar o primeiro gole do café.

- continue, por favor, disse-lhe.
- muitas coisas aconteceram desde que eu me mudei para cá. sinto que há qualquer coisa de maldição aqui dentro, é sempre uma angústia imensa passar os dias sem qualquer clientela ou visita. perdoe-me por ter sentado à mesa, por ter feito esse vão desabafo. nada tem muita importância quando se perde o lar. aquele lugar era meu lar, compreende? eu morava no segundo andar do restaurante. quase não havia diferença entre a minha vida profissional e a íntima. tudo tão entrelaçado e eu me perdi de mim mesmo quando me tiraram o lar à força.
- eu lamento muito...
- a senhora vive aqui? há outros restaurantes mais animados que o meu, veja bem, há restaurantes com gente e risos e movimentos, tilintar de taças de vinho, conversas de gente apaixonada ao pé do ouvido, há restaurantes com gente, compreende?
- eu gosto daqui, disse eu. é perto de onde agora moro, cheguei hoje mesmo à boulogne...

o homem continuou a falar, como se preferisse um monólogo de lamentações e os meus comentários não tivessem qualquer importância:

- há vida lá fora, compreende? aqui é tudo morto e nem as meninas dançando no parque conseguem me fazer sorrir como quando a minha vida era lar! não há folhas secas no chão, sinal qualquer de mudança de estação, não há vida, não há vida, não há...

não obstante a parca luz do estabelecimento, agora eu pude ver: chorava. e chorava como um menino sem esperanças. levantou-se e virou-se de costas, para evitar que eu o visse, mas era tarde demais. estava diante de mim um homem desterrado de si mesmo e de toda a existência que pretendia construir.

eu me levantei também, deixei algumas moedas sobre a mesa para pagar o café e saí imediatamente dali. pensei que o homem preferia e deveria estar só. nunca se deve parar para observar o constrangimento de um mero desconhecido, que tudo soa a um cruel sadismo ou execrável pena.

o frio piorara e as gentes pareciam andar mais rápido aos seus objetivos, talvez para se livrarem ligeiro do frio cortante. em mim, era um frio n'alma. um homem desarmado diante de um quadro que o adornava de nostalgia do que havia sido, do que pretendia ser. as meninas dançando descalças em tons pastéis eram estáticas aos olhos ordinários, mas para o homem eram uma memória triste, eram o medo representado e esse sim era vivo, destoando de cada mesa, cada cadeira, a televisão ligada e esquecida e o homem inclusive.

6 comentários:

Anônimo disse...

Mil idéias
- quando vc enta n bar e o cara ignora, lembro do chaves (como não poderia faltar, né...)
0 quando fala do quasro lemvro de um filme, onde alguém é preso num quadro... não sei porque, mas isso sempre me parece muito, mas muito bizarro e assustador
- quando fala do constrangimento do camarada, parece uma criança que é surpreendida pela mãe no meio da masturbação! ahahhahahahah

Anônimo disse...

"uma saudação repetida sem reflexão, como as preces maçantes de um terço."

Caramba, isso foi realmente genial!!

Gostei muito do conto, principalmente pq eu fiquei meio abatido quando termineu...
sabe aquelas coisas que nós lemos e que fazem nosso humor mudar?!! Então, eu adoro quando isso acopntece. Outra coisa tambem é a visualizaçào do ambiente... se passou todinho, como um filme em minha mente.Um destaque especial para o quadro em tons pastéis, que se fosse do jeito que eu imaginei, seria belissimo.

É ISSO AÍIIIIII!!!!!!!
Um beijo, e obrigado por mais esse conto maravilhoso.

Anônimo disse...

simplesmente maravilhoso, adorei mesmo, ainda por cima que este conto se passa em boulogne aonde eu conheci uma pessoa, que mudou a minha maneira de pensar, que me fez pensar em alguns conceitos da vida! Lindo voce deveria publicar

Anônimo disse...

genial.
descrição perfeita do ambiente..
quero maaaaaaaaais.

beijos, mulé

Anônimo disse...

Lindamente triste.

Anônimo disse...

Lindamente triste.